por Cid Furtado Filho
Filha de um
povo guerreiro, o povo GuajajaraTentehar(MA),a pequenina e simpática Sônia
BoneGuajajara, 38 anos, tem se destacado como uma importante lideranca do
movimento indígena brasileiro. Com perspicácia e uma visão clara e objetiva das
questões que afetam os povos indígenas, tem esperança de ver, algum dia, um
país mais justo com os habitantes originais do Brasil. A construção desse
futuro, acredita, passa por fatores fundamentais, entre eles a educação,
respeito aos direitos do cidadão indígena, a preservação das diferentes
culturas e modo de vida, a preservação e ampliação do orgulho de sua identidade
étnica indígena.
Casada e
mãe de três filhos Sônia Guajajara (nome pelo qual ficou conhecida no movimento
indígena), atua no movimento em defesa dos indígenas a23 anos. Além do
aprendizado na luta pelos direitos indígenas, é graduada em Letras e Pós graduada
em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão.
Sua atuação no movimento começou
cedo, na adolescência, ainda no ensino médio, discutindo e debatendo com
colegas, pais e professores as questões indígenas. Ao voltar para aldeia continuou
atuando e estudando. Nas lutas e viagens do movimento sempre ajudou a colocar
as reivindicações e posições de seu povo de forma clara para índios e não
índios, o que lhe valeu o carinho e respeito da comunidade. “Para os anciãos, caciques e lideranças me
tinham como relatora oficial dos Guajajara: “A grande pequenina”. Era assim que
me chamavam”.
Trabalhou em escolas públicas e
privadas, na FUNAI, APAE e em diversas outras organizaçõese seu crescimento no
movimento foi sendo construído com o passar dos anos, com a participação em
dezenas de encontros, reuniões e mobilizações, locais, regionais e nacionais.
Foi diretora de uma das entidades mais representativas da luta indígena no
Maranhão, a COAPIMA – Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos
Indígenas do Maranhão por um período de 6 anos correspondente a 2 mandatos, hoje
é Vice Coordenadora da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira com sede em Manaus(AM).
Mais recentemente participou do
Fórum Permanente da ONU - Organização das Nações Unidas para Questões
Indígenas, realizado no ano passado (2011), em Nova Iorque.
A
trajetória de luta dessa líder Guajajara é exemplo para líderes, sejam eles
índios ou não índios. Uma oportunidade única para nós de Brasileiros de Raiz,
homenagearmos a forca da mulher indígena, celebrando o dia 5 de setembro, Dia
Internacional da Mulher indígena e oferecendo a elas o espaço para que defendam
suas idéias e possam continuar contribuindo com o movimento indígena como já o
fazem em outros canais de comunicação.
“Plantamos
vida, não alimentamos a morte. Eis o que aprendemos e o que queremos ensinar”,
destaca a Sônia, que você vai conhecer melhor a parti de agora.
BDR -Qual o papel
da mulher indígena dentro e fora da aldeia?
Sônia Guajajara- Embora
cada povo indígena tenha a sua organização política própria e divisão de papéis
entre homens e mulheres, em geral a participação das mulheres é mais discreta
ou menos evidente. Porém, mesmo assim dentro das tradições indígenas sempre
encontram formas de influenciar nas decisões da comunidade. As mulheres não vão
para as reuniões na casa do guerreiro ou no pátio, mas exercem uma enorme
pressão sobre seus maridos e influenciam significativamente sobre o que estes
vão dizer nas reuniões. Fora da comunidade essa participação se da quando ela
já adquire a confiança e passa a assumir o papel de liderança, neste patamar,
geralmente expressauma voz altiva e respeitada pelos seus povos e organizações.
BDR -A liderança
da mulher indígena sempre existiu ou surgiu de alguns anos pra cá?
Sônia Guajajara- A
mulher sempre teve um papel importante na condução das boas práticas e esse
espírito de líder é muito presente, pois sempre assumimos as tarefas mais
difíceis e de maior responsabilidade. Como em muitos povos a mulher tem pouca
visibilidade e não participa das discussões mais públicas e coletivas quando
uma liderança mulher desponta, sempre há resistências. Porém, sua força e
determinaçãoacabam sendo reconhecidas, pois muitas vezes ajuda seu povo ou
comunidade a ter conquistas que os homens sozinhos não conseguem. O
reconhecimento e aceitação da liderança damulher varia muito conforme os costumes tradicionais de
cada povo.
BDR -Como as
lideres mulheres tem trabalhado dentro do movimento
indígena?
Sônia Guajajara- Como
viemos de uma cultura onde predomina a voz masculina, ainda hoje há muita
resistência em ceder espaços baseados na espontaneidade do homem, muito se tem
que lutar para ocupar e desempenhar o papel de liderança, mas há de se
reconhecer que todas as mulheres atuantes no movimento indígena desempenham uma
postura firme, decisiva e comprometida com os objetivos da luta.Cito por
exemplo o reconhecido caso da Tuíra Kayapó que em 2009 passou seu terçado na
cara do representante da Eletronorte em protesto contra a já polêmica Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, uma imagem que valeu por milhares de palavras de
500 homens presentes, naquele momento.
BDR -O papel
delas evoluiu também ou o papel ainda é de criar os filhos transmitir os
ensinamentos a língua e etc?
Sônia Guajajara- Essas
funções são desempenhadas naturalmente pela figura da mãe, mulher, esposa,
filha, sempre assumimos diversos papéis e isso é o que mantém os laços e nossa
cultura viva. Ao lado do papel fundamental de mãe as mulheres assumem mais uma
tarefa, um desafio, muitas das vezes, um sacrifício, na representação política.
Não necessariamente temos que deixar de fazer determinadas obrigações para
assumir outras. Cito aqui o meu caso pessoal, mesmo ausente em determinados
momentos(que são muitos), assumo a função de mãe de meus 3 filhos e ainda de
filha cuidando e orientando meus pais. A propósito, quantas vezes já se viu um
homem levando seus filhos a uma reunião?? As mulheres sempre levam.
BDR -É possível
conciliar o trabalho tradicional com a participação nas lutas e no movimento
indígena?
Sônia Guajajara- Isso
me faz lembrar muito um líder indígena Carajá que dizia: “Eu posso ser quem
você é, sem deixar de ser quem sou”, então se eu posso ser qualquer
profissional, qualquer especialista sem deixar de ser indígena, pra luta é
ainda muito mais tranquilo, conciliar a luta do movimento com as raízes, pois
uma coisa não está desconectada da outra, a luta só faz sentido se tiver esse
viés de manter as tradições, e o direito a diferença, afinal a nossa luta do
dia a dia é pela defesa dos direitos de continuar sendo indígena e ser
reconhecido como tal. Garanto que a luta não é fácil, nem para os homens nem
para as mulheres, as lideranças como um todo, mas todo esforço ou sacrifício
vale a pena.Nosso povo está sempre preparado, estando na aldeia ou na cidade o
sangue indígena prevalece.
BDR -Como você
acredita que está a preservação da cultura indígena de uma forma geral no
Brasil?
Sônia Guajajara- Aos
512 anos de massacre, violência, tentativas de extermínio, podemos somar também
muita luta, força e resistência de nossos povos. Já tentaram nos integrar à
sociedade envolvente como previa Darci Ribeiro, mas estamos aqui, cada povo com
a sua cultura, sua tradição, seu modo de vida; muitos não falam mais a sua
língua materna, devido ao doloroso processo de colonização, outros, se
autoafirmam como indígenas, se identificam enquanto povos, mas lhe foi negado,
pelo sistema, o seu nome, a sua origem. Mas uma vez indígena, sempre
responderemos em nome dos nossos antepassados. Os povoamentos aproximaram-se de
nossas terras e nos foram apresentadas outras culturas, outro jeito de ser, e
foram nos envolvendo. Certamente que houve uma modificação em alguns rituais,
que também pode ser visto como um enriquecimento,desde que seja baseado no
orgulho de ser indígena.
BDR -É possível
manter a cultura e o modo de vida tradicional vivos e conciliar isso com as
vantagens e confortos da vida moderna, da cidade e do branco?
Sônia Guajajara - Posso assegurar que o nos dias de hoje o que
nos mantém aqui na cidade dos brancos, é essa necessidade de fazer a luta, de
estar sempre perto, vigilantes para não nos enfiarem goela abaixo as imposições
de um desejo desenfreado por acúmulo de bens. Precisamos estar
constantemente cuidando de uma tarefa que teoricamente seria dos representantes
do povo, os políticos, que são eleitos para cuidar dos interesses populares e
que, no entanto, cuidam apenas de si mesmos. Por isso nós precisamos estar aqui
24h para defender os interesses de nossos povos. Como se não bastasse apenas
violar os direitos já adquiridos, querem acabar com os que temos. Numa situação
como estas como é que podemos ficar apenas nas aldeias? Precisamos estar nas
cidades acompanhando e participando dos debates. Felizmente temos pra onde
voltar e voltando temos lá a nossa casa, nossos parentes,nossas festas
tradicionais, para nos confortar. Mas é naturalmente possível manter a cultura e
usufruir dos bens e confortos da vida moderna, afinal somos seres humanos e cidadãos
de um mesmo Brasil.
É claro que não se deixa de ser índio por usar um celular,
um notebook, um tablet, ipad, esses meios tecnológicos são instrumentos que
utilizamos para fortalecer as nossas relações com outros povos, afinal somos
305 povos diferentes, com modos de vida e culturas diferentes, 185 línguas
faladas. É uma diversidade muito rica, precisamos dessas ferramentas para nos
conectar com o mundo aqui fora e assim nos preparar melhor para enfrentarmos as
lutas no mesmo nível. Por acaso um brasileiro não indígena que usa
produtos japonês ou norte americanos(como é comum no mundo burgûes)... ele
deixa de ser brasileiro?
BDR -O índio quer
abandonar sua identidade, quer nega-la?
Hoje um exemplo concreto é o resultado do último censo do
IBGE onde houve um aumento considerável da população indígena, pois houve uma
adequação ao formulário que possibilitou as pessoas a terem a opção de se
identificarem como indígena e a autoafirmação aconteceu, isso mostra que cada
vez mais o povo brasileiro está reconhecendo a sua origem.
BDR -O
preconceito da sociedade contra os indígenas brasileiros é grande em muitos
lugares do País. Qual o caminho para superar o preconceito?
Sônia Guajajara - Posso
dizer que quanto mais próximas as cidades ou povoados das comunidades
indígenas, maior é o preconceito dessa população, e em muitos lugares ainda se
usa o termo “civilizado”, para diferenciar indígenas de não indígenas. É muito
comum as pessoas chegarem pra mim e perguntar você é índia ou civilizada? Eu
respondo, sou índia civilizada. Há quem pergunte ainda, você é índia de
verdade? Sou sim, porquê? Ah, você nem parece, tá toda limpinha, arrumadinha e
por aí vai! Acho que o preconceito existe por pura falta de conhecimento,
melhor dizendo, ignorância mesmo das pessoas sobre a diversidade étnica e
cultural. Precisam saber simplesmente que não somos Ets, apenas somos pertencente
a um povo que originou o Brasil e que optamos por fazer a resistência pra nos
manter, enquanto povos, diferentes. Isso tem que ser trabalhado nas escolas
desde o ensino básico até a faculdade.
BDR -Você
acredita que os povos indígenas que foram contatados mais recentemente são mais
índios que os índios que foram contatados desde o descobrimento?
BDR -Muitos
indígenas têm preconceito com índios do sul ou do nordeste, porque eles
perderam quase toda sua cultura, com o passar dos anos e com a pressão constante
para que eles se integrassem à sociedade. Como vencer esse preconceito entre os
próprios índios?
Ao longo desses anos foi se perpetuando a ideia de que índio
tinha que ter olhos puxados , cabelos pretos e lisos, aquele que não tivesse
essas características não era considerado indígena, e claro que esse conceito
ganhou o mundo. As mulheres indígenas foram abusadas e violentadas
monstruosamente, nascendo assim os mais variados biótipos indígenas, porém com
o conceito já formado é preciso lutar pra vencer este pré-conceito.
BDR -Uma das
grandes preocupações hoje é com o desrespeito aos direitos indígenas. Não a um
ou outro mais a quase todos. Quais os caminhos que as mulheres indígenas vêm
para garantir os direitos de seus povos?
Sônia Guajajara- Estamos
numa fase difícil de retrocesso de direitos conquistados, de ameaças, de
criminalização de lideranças indígenas, ou seja de vítimas passam a ser réus
como é o caso dos Xucurus em Pernambuco. É como se estivéssemos vivendo o
período da colonização, onde se conquistava um dia após o outro, todos eram
vítimas do processo, hoje somos vitimas do sistema governamental, do
capitalismo, do progresso.Tudo legalizado para acabar com nossos direitos.
Estamos no meio de um fogo cruzado, de um lado um sistema, de outro os donos do
capital que comandam seus pistoleiros como é o caso emblemático de MS e
Nordeste Brasileiro. A garantia de direitos se faz ao caminhar numa luta
conjunta de todos os povos, fazendo fileiras pela vida e pela dignidade.
BDR -Acredita que
algum dia a sociedade brasileira vai mudar a imagem que tem dos índios e irá
respeitar seus direitos e cultura?
Sônia Guajajara- Temos
que acreditar numa sociedade mais justa e igualitária.Lutamos pra isso!
BDR -Oque fazer
para que essa realidade mude e indígenas e não indígenas convivam com respeito
e harmonia?
Sônia Guajajara- Acho
que essa transformação é possível por meio da educação, é preciso uma motivação
maior para esse despertar. Acredito que a juventude de hoje já está começando a
entender a existência dessa diversidade étnica e cultural, basta que haja maior
investimentos nas redes de ensino que promovam intercâmbios culturais, inserção
do tema nas grades curriculares. Não sobre o índio que existia, mas sobre o
índio que existe e resiste .Só conhecendo
a realidade é que se alcança o respeito.
BDR -Além da
questão dos direitos quais são os outros problemas dos índios brasileiros na
atualidade em sua opinião?
Sônia Guajajara- A
bandeira de luta principal do movimento indígena sempre foi pelos Territórios, e mesmo assim, com muita
gente falando que “é muita Terra para pouco índio”, ainda temos muitos
indígenas sem terra, que vivem debaixo de lonas no MS, que vivem em
acampamentos no Sul( são 60 acampamentos hoje), que lutam por retomadas na
Bahia e Pernambuco e não podemos esquecer dos grandes empreendimentos de
infraestrutura do governo federal, que consideram apenas o crescimento
econômico sem considerar as questões socioambientais; a criminalização de
lideranças indígenas no Nordeste e a falta de políticas públicas adequadas e
condizentes com as realidades indígenas.
BDR -Qual é o
futuro que você vê para os Povos Indígenas brasileiros?
Sônia Guajajara- Bom
eu penso em um, embora a realidade brasileira aponte outro. O futuro ideal
seria todos os povos vivendo com seus territórios demarcados, protegidos e
livres de ameaças.Para isso não podemos cochilar, é preciso que nos ponhamos de
pé sempre prontos para o embate e com a mente direcionada. ”Se não nos permitem sonhar então não os
deixaremos dormir” e seguimos defendendo um Brasil plural, que seja dos
brasileiros, incluindo os indígenas e respeitando e valorizando seu papel no
país.
BDR -Qual recado
gostaria de mandar para outras mulheres indígenas que atuam no movimento como
você?
Sônia Guajajara- Que
o nosso espírito de guerreiras jamais esmoreça. A luta para as futuras gerações
já começou!
BDR -Que mensagem
gostaria de deixar para índios e não índios?
Sônia Guajajara- Que
o mundo é redondo e tudo que suceder à Terra, sucederá também aos filhos da
Terra e principalmente para aqueles que não respeitam a terra. A Terra é nossa
mãe, não pode vender a nossa mãe.
BDR -Você é a
primeira líder indígena a falar a Brasileiros de Raiz. O que gostaria de dizer
aos leitores?
Sônia Guajajara- A
causa indígena é de todos nós. Apóie você também esta causa!
Fonte: Revista Brasileiros de Raíz, Ano II, nº 09, Agosto/Setembro de 2012.