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domingo, 12 de maio de 2013

Líder Guajajara acredita na forca feminina, na educação e no orgulho de ser indígena, como fatores de mudança.


por Cid Furtado Filho

            Filha de um povo guerreiro, o povo GuajajaraTentehar(MA),a pequenina e simpática Sônia BoneGuajajara, 38 anos, tem se destacado como uma importante lideranca do movimento indígena brasileiro. Com perspicácia e uma visão clara e objetiva das questões que afetam os povos indígenas, tem esperança de ver, algum dia, um país mais justo com os habitantes originais do Brasil. A construção desse futuro, acredita, passa por fatores fundamentais, entre eles a educação, respeito aos direitos do cidadão indígena, a preservação das diferentes culturas e modo de vida, a preservação e ampliação do orgulho de sua identidade étnica indígena.
            Casada e mãe de três filhos Sônia Guajajara (nome pelo qual ficou conhecida no movimento indígena), atua no movimento em defesa dos indígenas a23 anos. Além do aprendizado na luta pelos direitos indígenas, é graduada em Letras e Pós graduada em Educação Especial pela Universidade Estadual do Maranhão.
Sua atuação no movimento começou cedo, na adolescência, ainda no ensino médio, discutindo e debatendo com colegas, pais e professores as questões indígenas. Ao voltar para aldeia continuou atuando e estudando. Nas lutas e viagens do movimento sempre ajudou a colocar as reivindicações e posições de seu povo de forma clara para índios e não índios, o que lhe valeu o carinho e respeito da comunidade.  “Para os anciãos, caciques e lideranças me tinham como relatora oficial dos Guajajara: “A grande pequenina”. Era assim que me chamavam”.
Trabalhou em escolas públicas e privadas, na FUNAI, APAE e em diversas outras organizaçõese seu crescimento no movimento foi sendo construído com o passar dos anos, com a participação em dezenas de encontros, reuniões e mobilizações, locais, regionais e nacionais. Foi diretora de uma das entidades mais representativas da luta indígena no Maranhão, a COAPIMA – Coordenação das Organizações e Articulações dos Povos Indígenas do Maranhão por um período de 6 anos correspondente a 2 mandatos, hoje é Vice Coordenadora da COIAB – Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira com sede em Manaus(AM).
Mais recentemente participou do Fórum Permanente da ONU - Organização das Nações Unidas para Questões Indígenas, realizado no ano passado (2011), em Nova Iorque.
            A trajetória de luta dessa líder Guajajara é exemplo para líderes, sejam eles índios ou não índios. Uma oportunidade única para nós de Brasileiros de Raiz, homenagearmos a forca da mulher indígena, celebrando o dia 5 de setembro, Dia Internacional da Mulher indígena e oferecendo a elas o espaço para que defendam suas idéias e possam continuar contribuindo com o movimento indígena como já o fazem em outros canais de comunicação.  
            “Plantamos vida, não alimentamos a morte. Eis o que aprendemos e o que queremos ensinar”, destaca a Sônia, que você vai conhecer melhor a parti de agora.
           
BDR -Qual o papel da mulher indígena dentro e fora da aldeia?
Sônia Guajajara- Embora cada povo indígena tenha a sua organização política própria e divisão de papéis entre homens e mulheres, em geral a participação das mulheres é mais discreta ou menos evidente. Porém, mesmo assim dentro das tradições indígenas sempre encontram formas de influenciar nas decisões da comunidade. As mulheres não vão para as reuniões na casa do guerreiro ou no pátio, mas exercem uma enorme pressão sobre seus maridos e influenciam significativamente sobre o que estes vão dizer nas reuniões. Fora da comunidade essa participação se da quando ela já adquire a confiança e passa a assumir o papel de liderança, neste patamar, geralmente expressauma voz altiva e respeitada pelos seus povos e organizações.
BDR -A liderança da mulher indígena sempre existiu ou surgiu de alguns anos pra cá?
Sônia Guajajara- A mulher sempre teve um papel importante na condução das boas práticas e esse espírito de líder é muito presente, pois sempre assumimos as tarefas mais difíceis e de maior responsabilidade. Como em muitos povos a mulher tem pouca visibilidade e não participa das discussões mais públicas e coletivas quando uma liderança mulher desponta, sempre há resistências. Porém, sua força e determinaçãoacabam sendo reconhecidas, pois muitas vezes ajuda seu povo ou comunidade a ter conquistas que os homens sozinhos não conseguem. O reconhecimento e aceitação da liderança damulher varia  muito conforme os costumes tradicionais de cada povo.
BDR -Como as lideres mulheres tem trabalhado dentro do movimento indígena?
Sônia Guajajara- Como viemos de uma cultura onde predomina a voz masculina, ainda hoje há muita resistência em ceder espaços baseados na espontaneidade do homem, muito se tem que lutar para ocupar e desempenhar o papel de liderança, mas há de se reconhecer que todas as mulheres atuantes no movimento indígena desempenham uma postura firme, decisiva e comprometida com os objetivos da luta.Cito por exemplo o reconhecido caso da Tuíra Kayapó que em 2009 passou seu terçado na cara do representante da Eletronorte em protesto contra a já polêmica Usina Hidrelétrica de Belo Monte, uma imagem que valeu por milhares de palavras de 500 homens presentes, naquele momento.
BDR -O papel delas evoluiu também ou o papel ainda é de criar os filhos transmitir os ensinamentos a língua e etc?           
Sônia Guajajara- Essas funções são desempenhadas naturalmente pela figura da mãe, mulher, esposa, filha, sempre assumimos diversos papéis e isso é o que mantém os laços e nossa cultura viva. Ao lado do papel fundamental de mãe as mulheres assumem mais uma tarefa, um desafio, muitas das vezes, um sacrifício, na representação política. Não necessariamente temos que deixar de fazer determinadas obrigações para assumir outras. Cito aqui o meu caso pessoal, mesmo ausente em determinados momentos(que são muitos), assumo a função de mãe de meus 3 filhos e ainda de filha cuidando e orientando meus pais. A propósito, quantas vezes já se viu um homem levando seus filhos a uma reunião?? As mulheres sempre levam.
BDR -É possível conciliar o trabalho tradicional com a participação nas lutas e no movimento indígena?
Sônia Guajajara- Isso me faz lembrar muito um líder indígena Carajá que dizia: “Eu posso ser quem você é, sem deixar de ser quem sou”, então se eu posso ser qualquer profissional, qualquer especialista sem deixar de ser indígena, pra luta é ainda muito mais tranquilo, conciliar a luta do movimento com as raízes, pois uma coisa não está desconectada da outra, a luta só faz sentido se tiver esse viés de manter as tradições, e o direito a diferença, afinal a nossa luta do dia a dia é pela defesa dos direitos de continuar sendo indígena e ser reconhecido como tal. Garanto que a luta não é fácil, nem para os homens nem para as mulheres, as lideranças como um todo, mas todo esforço ou sacrifício vale a pena.Nosso povo está sempre preparado, estando na aldeia ou na cidade o sangue indígena prevalece.
BDR -Como você acredita que está a preservação da cultura indígena de uma forma geral no Brasil?
Sônia Guajajara- Aos 512 anos de massacre, violência, tentativas de extermínio, podemos somar também muita luta, força e resistência de nossos povos. Já tentaram nos integrar à sociedade envolvente como previa Darci Ribeiro, mas estamos aqui, cada povo com a sua cultura, sua tradição, seu modo de vida; muitos não falam mais a sua língua materna, devido ao doloroso processo de colonização, outros, se autoafirmam como indígenas, se identificam enquanto povos, mas lhe foi negado, pelo sistema, o seu nome, a sua origem. Mas uma vez indígena, sempre responderemos em nome dos nossos antepassados. Os povoamentos aproximaram-se de nossas terras e nos foram apresentadas outras culturas, outro jeito de ser, e foram nos envolvendo. Certamente que houve uma modificação em alguns rituais, que também pode ser visto como um enriquecimento,desde que seja baseado no orgulho de ser indígena.
BDR -É possível manter a cultura e o modo de vida tradicional vivos e conciliar isso com as vantagens e confortos da vida moderna, da cidade e do branco?
Sônia Guajajara - Posso assegurar que o nos dias de hoje o que nos mantém aqui na cidade dos brancos, é essa necessidade de fazer a luta, de estar sempre perto, vigilantes para não nos enfiarem goela abaixo as imposições de um desejo desenfreado por acúmulo de bens. Precisamos estar constantemente cuidando de uma tarefa que teoricamente seria dos representantes do povo, os políticos, que são eleitos para cuidar dos interesses populares e que, no entanto, cuidam apenas de si mesmos. Por isso nós precisamos estar aqui 24h para defender os interesses de nossos povos. Como se não bastasse apenas violar os direitos já adquiridos, querem acabar com os que temos. Numa situação como estas como é que podemos ficar apenas nas aldeias? Precisamos estar nas cidades acompanhando e participando dos debates. Felizmente temos pra onde voltar e voltando temos lá a nossa casa, nossos parentes,nossas festas tradicionais, para nos confortar. Mas é naturalmente possível manter a cultura e usufruir dos bens e confortos da vida moderna, afinal somos seres humanos e cidadãos de um mesmo Brasil.
BDR -Você acha que por querer ter os confortos e vantagens da vida moderna, da cidade, o índio quer deixar de ser índio?
Sônia Guajajara - Esta pergunta é sempre feita e, na verdade, demonstra um preconceito contra os indígenas. Por várias razões: não é só na “vida moderna” que existe conforto e vantagens. Na vida das aldeias, temos muito conforto e vantagens também: qualidade de vida, qualidade ambiental, relações de confiança (não temos roubos, nem desigualdade nas aldeias); nas cidades não existem apenas vantagens e conforto. Para a maior parte da população, existe sim a pobreza, precariedade de moradia etc.
Além disso, acho importante ressaltar que o contato é uma questão de troca. Assim como os indígenas querem aproveitar e assimilar o que tem de bom em outras sociedades, o pessoal da cidade também quer se aproveitar dos benefícios das aldeias: a base alimentar do Brasil tem muitos itens indígenas (farinha etc), a medicina “ocidental” se aproveitou do conhecimento tradicional milenar indígena para produzir seus remédios, a relação dos índios com a natureza ajuda na preservação ambiental do planeta e assim por diante. Então é uma TROCA, de duas vias.
É claro que não se deixa de ser índio por usar um celular, um notebook, um tablet, ipad, esses meios tecnológicos são instrumentos que utilizamos para fortalecer as nossas relações com outros povos, afinal somos 305 povos diferentes, com modos de vida e culturas diferentes, 185 línguas faladas. É uma diversidade muito rica, precisamos dessas ferramentas para nos conectar com o mundo aqui fora e assim nos preparar melhor para enfrentarmos as lutas no mesmo nível. Por acaso um brasileiro não indígena que usa produtos japonês ou norte americanos(como é comum no mundo burgûes)... ele deixa de ser brasileiro?
BDR -O índio quer abandonar sua identidade, quer nega-la?
Sônia Guajajara- O índio verdadeiro jamais nega a sua identidade para assumir outra, ele pode ir para outro planeta, ele sempre terá orgulho de pertencer a um povo, porém durante um certo tempo, a opressão colonial fez com que muitos indígenas escondessem sua identidade. Mas esconderam não por opção, por coerção. Isso é o etnocídio.
Hoje um exemplo concreto é o resultado do último censo do IBGE onde houve um aumento considerável da população indígena, pois houve uma adequação ao formulário que possibilitou as pessoas a terem a opção de se identificarem como indígena e a autoafirmação aconteceu, isso mostra que cada vez mais o povo brasileiro está reconhecendo a sua origem.
BDR -O preconceito da sociedade contra os indígenas brasileiros é grande em muitos lugares do País. Qual o caminho para superar o preconceito?
Sônia Guajajara - Posso dizer que quanto mais próximas as cidades ou povoados das comunidades indígenas, maior é o preconceito dessa população, e em muitos lugares ainda se usa o termo “civilizado”, para diferenciar indígenas de não indígenas. É muito comum as pessoas chegarem pra mim e perguntar você é índia ou civilizada? Eu respondo, sou índia civilizada. Há quem pergunte ainda, você é índia de verdade? Sou sim, porquê? Ah, você nem parece, tá toda limpinha, arrumadinha e por aí vai! Acho que o preconceito existe por pura falta de conhecimento, melhor dizendo, ignorância mesmo das pessoas sobre a diversidade étnica e cultural. Precisam saber simplesmente que não somos Ets, apenas somos pertencente a um povo que originou o Brasil e que optamos por fazer a resistência pra nos manter, enquanto povos, diferentes. Isso tem que ser trabalhado nas escolas desde o ensino básico até a faculdade.
BDR -Você acredita que os povos indígenas que foram contatados mais recentemente são mais índios que os índios que foram contatados desde o descobrimento?
Sônia Guajajara- No meu entendimento não há mais índios ou menos índios.Há indígenas com culturas e modos de vida diferentes. O que diferencia é que os contatados mais recentes felizmente ainda não conheceram tudo que o mundo globalizado oferece, então possuem menos conhecimentos sobre essa sociedade e vivem mais conforme asua cultura, ao passo que os contatados há 300 anos ou mais, já conhecem, mesmoque tenha sido na base de muita porrada, opressão, violência, com  territórios usurpados, foram forçados a assimilar novas formas de vida, etc., conhecendo assim os dois mundos. É como uma criança que vai descobrindo aos poucos.
BDR -Muitos indígenas têm preconceito com índios do sul ou do nordeste, porque eles perderam quase toda sua cultura, com o passar dos anos e com a pressão constante para que eles se integrassem à sociedade. Como vencer esse preconceito entre os próprios índios?
Sônia Guajajara- Em primeiro lugar, este preconceito é dos não indígenas!!!! Com índio sempre tem preconceito. Se está na aldeia, no seu modo de vida tradicional, é primitivo, atrasado etc. Se está mais integrado aos costumes urbanos, não é mais índio... Então alguns povos acabam assimilando este preconceito que é dos não indígenas.
Ao longo desses anos foi se perpetuando a ideia de que índio tinha que ter olhos puxados , cabelos pretos e lisos, aquele que não tivesse essas características não era considerado indígena, e claro que esse conceito ganhou o mundo. As mulheres indígenas foram abusadas e violentadas monstruosamente, nascendo assim os mais variados biótipos indígenas, porém com o conceito já formado é preciso lutar pra vencer este pré-conceito.
BDR -Uma das grandes preocupações hoje é com o desrespeito aos direitos indígenas. Não a um ou outro mais a quase todos. Quais os caminhos que as mulheres indígenas vêm para garantir os direitos de seus povos?
Sônia Guajajara- Estamos numa fase difícil de retrocesso de direitos conquistados, de ameaças, de criminalização de lideranças indígenas, ou seja de vítimas passam a ser réus como é o caso dos Xucurus em Pernambuco. É como se estivéssemos vivendo o período da colonização, onde se conquistava um dia após o outro, todos eram vítimas do processo, hoje somos vitimas do sistema governamental, do capitalismo, do progresso.Tudo legalizado para acabar com nossos direitos. Estamos no meio de um fogo cruzado, de um lado um sistema, de outro os donos do capital que comandam seus pistoleiros como é o caso emblemático de MS e Nordeste Brasileiro. A garantia de direitos se faz ao caminhar numa luta conjunta de todos os povos, fazendo fileiras pela vida e pela dignidade.
BDR -Acredita que algum dia a sociedade brasileira vai mudar a imagem que tem dos índios e irá respeitar seus direitos e cultura?
Sônia Guajajara- Temos que acreditar numa sociedade mais justa e igualitária.Lutamos pra isso!
BDR -Oque fazer para que essa realidade mude e indígenas e não indígenas convivam com respeito e harmonia?
Sônia Guajajara- Acho que essa transformação é possível por meio da educação, é preciso uma motivação maior para esse despertar. Acredito que a juventude de hoje já está começando a entender a existência dessa diversidade étnica e cultural, basta que haja maior investimentos nas redes de ensino que promovam intercâmbios culturais, inserção do tema nas grades curriculares. Não sobre o índio que existia, mas sobre o índio que existe e resiste .Só conhecendo  a realidade é que se alcança o respeito.
BDR -Além da questão dos direitos quais são os outros problemas dos índios brasileiros na atualidade em sua opinião?
Sônia Guajajara- A bandeira de luta principal do movimento indígena sempre foi  pelos Territórios, e mesmo assim, com muita gente falando que “é muita Terra para pouco índio”, ainda temos muitos indígenas sem terra, que vivem debaixo de lonas no MS, que vivem em acampamentos no Sul( são 60 acampamentos hoje), que lutam por retomadas na Bahia e Pernambuco e não podemos esquecer dos grandes empreendimentos de infraestrutura do governo federal, que consideram apenas o crescimento econômico sem considerar as questões socioambientais; a criminalização de lideranças indígenas no Nordeste e a falta de políticas públicas adequadas e condizentes com as realidades indígenas.
BDR -Qual é o futuro que você vê para os Povos Indígenas brasileiros?
Sônia Guajajara- Bom eu penso em um, embora a realidade brasileira aponte outro. O futuro ideal seria todos os povos vivendo com seus territórios demarcados, protegidos e livres de ameaças.Para isso não podemos cochilar, é preciso que nos ponhamos de pé sempre prontos para o embate e com a mente direcionada.  ”Se não nos permitem sonhar então não os deixaremos dormir” e seguimos defendendo um Brasil plural, que seja dos brasileiros, incluindo os indígenas e respeitando e valorizando seu papel no país.
BDR -Qual recado gostaria de mandar para outras mulheres indígenas que atuam no movimento como você?
Sônia Guajajara- Que o nosso espírito de guerreiras jamais esmoreça. A luta para as futuras gerações já começou!
BDR -Que mensagem gostaria de deixar para índios e não índios?
Sônia Guajajara- Que o mundo é redondo e tudo que suceder à Terra, sucederá também aos filhos da Terra e principalmente para aqueles que não respeitam a terra. A Terra é nossa mãe, não pode vender a nossa mãe.
BDR -Você é a primeira líder indígena a falar a Brasileiros de Raiz. O que gostaria de dizer aos leitores?
Sônia Guajajara- A causa indígena é de todos nós. Apóie você também esta causa!


Fonte: Revista Brasileiros de Raíz, Ano II, nº 09, Agosto/Setembro de 2012.

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