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terça-feira, 30 de abril de 2013

O legado do Abril Indígena 2013


Clovis Antonio Brighenti
Doutor em História Cultural

A 11ª edição do Abril Indígena - Acampamento Terra Livre, que ocorre anualmente em Brasília (exceto em duas edições que ocorreram fora da Capital Federal, em Campo Grande/MS e Rio de Janeiro/RJ, respectivamente), marcou um passo significativo do movimento indígena brasileiro na manutenção dos direitos e na manifestação da necessidade da participação indígena em todos os temas que lhes digam respeito, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Pela excepcionalidade dos acontecimentos e pela unidade do movimento, esse Abril Indígena pode ser considerado uma singularidade na história recente do movimento indígena no Brasil.      

Inicialmente analisamos a participação dos jovens indígenas no ato acontecido na capital. Estes se fizerampresentes em grande número. Mais de 50% dos participantes eram jovens, muitos deles universitários, com caras e corpos pintados, portando cocar e fazendo uso de celular e computador. Acompanharam atentamente os sábios, escutaram, se manifestaram e demonstraram entendimento sobre os temas relacionados às suas comunidades. A não-passividade foi a marca da juventude indígena.

Os Tupinambá, de tanta bravura no período colonial, demonstraram porque Florestan Fernandes os denominou povo da guerra; porque Hans Staden os temeu; porque os portugueses tiveram dificuldades de dominar seu território; porque com positiva astúcia aliaram-se aos franceses no velho Rio de Janeiro para defender suas vidas. No Congresso Nacional ecoou o canto dos guerreiros Tupinambá. No Palácio do Planalto, sua fervente indignação – sendo necessária a intervenção de seus líderes para que não rompessem as grossas paredes de vidro que separam o governo da população; vidro que apesar da transparência torna-se opaco aos olhos de Dilma Rousseff, que não consegue perceber os indígenas. De um povo considerado extinto pelos historiadores, etnólogos e demógrafos, estão mais vivos do que nunca. Não perderam a coragem e a tenacidade.

As mulheres, sempre presentes e atuantes. Mulheres indígenas que não são coadjuvantes ou que precisam clamar pelo debate de gênero para serem ouvidas, elas estão onde suas comunidades estão. Seus lugaresestão seguros em todos os espaços, seja na guerra ou na reza; em Brasília, ali estavam elas, ativas, defendendo seus povos e seus direitos. Mulheres mães com os filhos de colo e netos, que pareciam se divertir nos corredores do Congresso Nacional como se estivessem em suas aldeias.

As sábias lideranças de todas as regiões do país, calejadas das lutas em defesa do povo, também disseram presente em Brasília. Astutas ao perceber as malandragens de certos políticos e lúcidas ao orientar seus parentes, que não tinham nada de comandados, mas sim de dispostos participantes.

As lideres religiosos Guarani Kaiowá, que não cansaram de entoar seus m’baracás e takuapus e invocar porNhamandu para abrir portas no Congressoforam marcantes. Não há dúvidas de que as rezas Kaiowá (com acento) e os torés dos povos do nordeste brasileiro foram fundamentais para as conquistas do movimento indígena.

As pinturas e adornos corporais foram algo à parte, pela beleza, imponência e delicadeza dos traços e contornos. Singulares nos rostos das mulheres Kadiwéu, grupo conhecido na literatura como Guaikuru, povo guerreiro das margens do rio Paraguai que aterrorizava espanhóis e portugueses. Hábeis cavaleiros que se em tempos passados foram fundamentais por defender o espaço a Portugal hoje lutam para que o estado brasileiro reconheça seu território e retire os latifundiários invasores. 

Essa é apenas uma mostra do marco da diversidade, das especificidades e das particularidades vistas na capital neste abril. Mais de 700 pessoas, quase 1% da população indígena nacional, e próximo a 100 povos ali representados. Falavam uma única língua. Não, não nos referimos à língua portuguesa, até porque alguns nãofalam, mas a linguagem da unidade, da defesa das terras e dos direitos. Mesmo quando o governo, através dos ministérios da Justiça e do Meio Ambiente, tentou levá-los a uma cerimônia para a “imprensa ver” recusaram o convite. Queriam falar com a Dilma, mas mal sabiam que Dilma não conhece a língua indígena; ela aprendeu apenas o “agronegociês” – o idioma do latifúndio, o idioma da repressão, da qual, aliás, foi vítima em tempos recentes.

A firmeza e a convergência das convicções levaram uma plateia inteira a silenciar para melhor ouvir os discursosconcordando ou discordando através do entoar dos chocalhos, palmas e vaias, demonstrando que já sabiam exatamente o que queriam e o que desejavam, ao terem ido à Capital Federal.

Quando o movimento indígena deflorou as portas invioláveis do plenário da Câmara disse aos deputados e aos poderes dominantes que invioláveis são seus direitos. Direitos que ainda estão no bê-á-bá. Os indígenas estão ainda empenhados em conquistar o direito básico como a posse, manutenção e controle das suas terras – estas deveriam ter sido regularizadas até 1993 (Art. 67 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). As terras precisam estar regularizadas para que as comunidades e povos indígenas possam ampliar o debate sobre os direitos para outras temáticas, como a gestão territorial, a autonomia política, a construção de novas bases de relações com o estado brasileiro e com os demais estados latinoamericanos, no caso de povos transfronteiriços. Demonstraram também aos deputados que aquele plenário protegido por portas de vidro não são casulos para metamorfose de propostas anti-indígenas e retrógradas; que elas devem estar abertas àoxigenação da sociedade. Aquelas portas não podem ser escudos de defesa de parlamentares, mas simvoláteis à organização da sociedade.

As conquistas do movimento indígena foram significativas. A principal delas foi a paralisação do trâmite da PEC 215 na Câmara dos Deputados, mesmo que provisoriamente. Era algo que parecia impossível porque a bancada ruralista já tinha conseguido a criação da Comissão de Redação da PEC e pelo menos um partido já havia indicado os membros para compô-la.

O retorno da tramitação dessa matéria no Congresso Nacional está condicionado à análise de uma comissão paritária, criada com representantes indígenas e parlamentares. Essa comissão terá o encargo de analisar não apenas a PEC 215, mas todos os temas que estão tramitando na Câmara dos Deputados que dizem respeito aos direitos indígenas. Entre eles estão: o Estatuto dos Povos Indígenas – paralisado desde 1994;  PEC 237, que permite o arrendamento das terras com a posse indireta de terras indígenas por produtores rurais; Projeto de Lei 1610, que prevê a mineração em terras indígenas; e outros temas. Portanto haverá a possibilidade de fazer um debate amplo sobre os direitos indígenas, e não mais fracionado por assuntos de interesses anti-indígenas.

No Senado Federal não houve a mesma conquista. Barrados já na entrada do prédio, os indígenas não conseguiram romper as portas para ao menos sair o mofo que encobre aqueles senhores e senhoras que sequer dialogam com a sociedade.

Um pequeno grupo de cerca de 50 pessoas esteve debatendo com alguns poucos senadores que ainda têmdignidade. Mas a PEC 38 que dá “ao Senado Federal competência para aprovar processos de demarcação de terras indígenas” e determina que “a demarcação de terras indígenas ou unidades de conservação ambiental respeite o limite máximo de 30% da superfície de cada estado”, permanece tramitando na casa, a galopes.

No Palácio do Planalto não foram recebidos pela presidente Dilma;  se recusaram a falar com a ministra da Casa Civil e/ou seus auxiliares, mesmo quando estes imploraram por recebê-los. Disseram que não valia a pena conversar com quem não decide nada, com quem é mandado. As ações desses subservientes palacianosfizeram lembrar o “pelego”, aquele dirigente que bajulava o patrão e se dizia amigo do trabalhador, figura comum em chefias do movimento social e sindical nas décadas de 70 e 80, viva e piorada nos dias atuais.Avisaram a Sra. Dilma que se ela não conhece o caminho das aldeias eles conhecem os caminhos do Planalto.

A pauta com Dilma era longa, como longo é o saco de maldade do governo contra os indígenas. Portaria 303,de iniciativa da Advocacia Geral da União – AGU – que aplica a todas as terras indígenas do Brasil as 19 condicionantes propostas por um ministro do STF no julgamento da área Raposa Serra do Sol. Decreto nº 7.957/2013 que cria a Companhia de Operações Ambientais da Força Nacional de Segurança Pública para permitir o uso da força militar contra indígenas que se opõem a grandes obras do PAC, especialmente as hidrelétricas. Portaria Interministerial 419/2011 que pretende agilizar os licenciamentos de obras públicas mediante a redução dos direitos indígenas, de comunidades tradicionais e do meio ambiente.

O movimento indígena deixou claro que sabe exatamente quem comanda a edição de Decretos e Portarias. Se Dilma saiu pela porta dos fundos, 15 minutos antes dos indígenas chegaram ao Planalto, não terá como fugir permanentemente do diálogo com esses povos, a história não perdoará. O movimento indígena conseguiu se fazer ouvir. Pautou a imprensa, chamou a atenção da sociedade, firmou posição frente a seus perseguidores/detratores/adversários.

Boa parte da sociedade brasileira talvez não esperasse uma ação tão contundente dos povos indígenas. Eles mesmos devem ter se surpreendido com a disposição enérgica expressada em suas atitudes, porque nada do que aconteceu foi planejado de antemão. Foram para Capital Federal dialogar. Não foram ouvidos, tiveram que usar a força, física e espiritual, para serem ouvidos.

Talvez a maior conquista desses povos tenha sido a unidade na pluralidade, a consciência sobre as consequências das PEC, Decretos, Leis, Portarias que afetam seus direitos. Demonstraram tenacidade, capacidade de diálogo e determinação. Diferentemente de outros Acampamentos Terra Livre, neste o movimento indígena demonstrou amadurecimento, rompeu com uma forma “ordeira” de manifestações de esperar para se fazer ouvir; disseram não, basta, queremos que nos escutem, fizeram sua história, econtinuaram na história.

Demonstraram que fazer uso de tecnologias não os torna menos indígenas e que invadir as portas do mundo da política é exigência para ser protagonista de sua história, participando e vigiando todas as instâncias de decisão sobre seus direitos. Recuar na lei nunca mais, uma Constituição tão jovem precisa amadurecer e avançar, jamais retroceder.


Em decisão inédita, STF rejeita manobra do governo de MS contra demarcação de terras indígenas


Supremo considera reprovável a tentativa de retardar o processo demarcatório da Terra Indígena Taquara
Em decisão inédita, STF rejeita manobra do governo de MS contra demarcação de terras indígenas
Justiça Federal de Naviraí deve decidir pela validade da demarcação da TI Taquara
O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o pedido do Estado de Mato Grosso do Sul para figurar como parte em processo que questiona a demarcação da Terra Indígena Taquara, em Juti. O Estado justificava a medida argumentando que, caso houvesse demarcação, seria ele o responsável pela indenização aos proprietários.
A Justiça Federal de Naviraí remeteu os autos ao STF em 2010, por considerar que, se o Estado fosse incluído no processo, haveria o chamado conflito federativo entre MS e a União, o que obrigaria o julgamento ser realizado pelo Supremo.
Na decisão, a ministra Cármem Lúcia entendeu que as tentativas do Estado de MS de ingressar em ações judiciais ao lado de proprietários rurais contra a União e a Funai forçam um “aparente conflito federativo”. Para a ministra, esta é uma “prática reprovável, prestante apenas a retardar a solução da controvérsia e a pacificação social que dela se espera”. 
A partir de agora a ação volta a tramitar normalmente na Justiça Federal de Naviraí. O processo demarcatório da Terra Indígena Taquara, no entanto, continua suspenso até que haja uma decisão final. 
História
Na década de 1950, a população indígena que habitava originalmente os 9.700 hectares  da TI Taquara foi removida pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e dispersa por várias localidades. Em 1999 alguns índios reocuparam uma fração do terreno (96,8 há), que faz parte da Fazenda Brasília do Sul. Os proprietários entraram no mesmo ano com ação de reintegração de posse, mas a Funai já havia iniciado estudos para demarcação.
Desde então, uma longa disputa judicial está em andamento. Se por um lado os órgãos de proteção aos índios tentam garantir a ocupação tradicional da terra, por outro, os proprietários da fazenda e o Estado de MS sustentam que, à época da aquisição do imóvel, não existia ocupação indígena no local.  Após ingressar no STF, em 2010, o processo demarcatório foi suspenso. Agora, a Justiça Federal de Naviraí irá decidir pela validade da demarcação da TI Taquara.
As disputas entre índios e fazendeiros são marcadas pela violência. Em janeiro de 2003 o cacique guarani kaiowá Marco Veron foi brutalmente assassinado. Agressores contratados pelo fazendeiro dispararam e espancaram os indígenas. Veron, à época com 72 anos, não resistiu às agressões e morreu com traumatismo craniano. O caso ganhou repercussão internacional e foi o único homicídio de indígena no MS que teve julgamento e condenação.

Política indígena brasileira vive momento perigoso, diz antropóloga da UFRJ


Vladimir Platonow
Repórter da Agência Brasil

Rio de Janeiro – O movimento indígena brasileiro vive um momento delicado, ante as pressões de setores econômicos e políticos que cobiçam as terras e aldeias indígenas para a exploração de madeira, agricultura ou recursos naturais e minerais. A avaliação é da antropóloga Elsja Lagrou, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que adverte para uma perda de direitos históricos, duramente conquistados pelos índios nas últimas décadas.
Segundo ela, um exemplo disso é a possível aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC 215/2000), que inclui nas competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a criação de unidades de conservação ambiental e a ratificação das demarcações já homologadas.
“Estamos vivendo um momento perigoso, com o ressurgimento de uma ideologia desenvolvimentista que não sabe avaliar os riscos que os recém-conquistados direitos dos índios estão correndo hoje em dia. Isso acontece quando se começa a recolocar em questão os direitos ao território e os direitos à continuação a um estilo de vida. Essa euforia desenvolvimentista está colocando em risco muitas conquistas indígenas, que só vão poder se consolidar se os índios ganharem cada vez mais espaço para se fazer ouvir, nas universidades e nas grandes metrópoles”, disse Elsja.
Além das pressões sobre as terras indígenas no interior do país, um exemplo de perda recente, segundo ela, foi a experiência da desocupação do antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, quando índios e integrantes da sociedade civil foram retirados com violência policial do imóvel, no dia 22 de março. O local onde nasceu o Serviço de Proteção ao Índio, no século passado, vai ser transformado em um museu olímpico, por determinação do governo do estado.
“Foi um momento que colocou em relevo uma questão que não se reduz à dimensão indígena. Qual o preço que a cidade vai pagar para receber grandes eventos? Nacionalmente e internacionalmente houve muita divulgação desse embate e a visibilidade da presença indígena na cidade é muito importante. A questão precisa voltar a receber a atenção de uma década atrás, quando havia uma atitude muito mais aberta para as sociedades indígenas”.
A antropóloga defende a criação de um centro de referência indígena que garanta apoio aos índios em trânsito na cidade, principalmente estudantes, como era a ideia dos manifestantes que ocuparam o antigo Museu do Índio. “É crucial ter esse centro, onde possa existir uma troca à altura da riqueza dos conhecimentos indígenas, além de garantir a possibilidade de um pouso [para os viajantes de outras aldeias]. O aumento do número de estudantes indígenas vai fazer com que essa necessidade seja mais sentida. Alguns centros de estudos estão sendo criados, mas precisam de apoio político para se desenvolver”.
A professora contesta a o conceito daqueles que não reconhecem o índio urbano, pelo fato de não usar indumentária típica ou de utilizar vestimentas típicas das cidades e equipamentos tecnológicos como computadores e telefones celulares.
“O que é responsável pelo pertencimento a uma identidade, a uma etnia, é a consciência e a autoatribuição de um pertencimento a um grupo étnico e o reconhecimento pelos outros que essa pessoa pertence a esse grupo. O lugar não determina de jeito nenhum a consciência de pertencimento e as roupas, muito menos ainda”.
Para ela, a noção de que o índio verdadeiro é só o que vive na floresta reflete uma visão extremamente preconceituosa. “Existe [este preconceito] e tem sido usado politicamente para diminuir os direitos indígenas. Existe historicamente muito mais pessoas com herança indígena do que tem sido reconhecido. Esse argumento de que só é índio quem vive na floresta e que só é índio quem anda nu é hiperpreconceituoso e discriminador, para poder diminuir a chance dos indígenas exigirem o respeito aos seus direitos. É uma definição limitadora do que é identidade indígena, por parte de pessoas que competem com os índios pela terra”.

Edição: Tereza Barbosa
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Cimi repudia declarações do ministro da Justiça sobre mudanças no procedimento demarcatório de terras indígenas


O Conselho Indigenista Missionário (CIMI) vem a público manifestar preocupação e alertar para as ameaças feitas pelo governo federal, por meio do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo, conforme declarações veiculadas pela imprensa, de que mudará o procedimento de demarcação das terras indígenas. A vontade do ministro, no entender do Cimi, revela a intenção de agradar setores da base política do governo federal no Congresso Nacional, especialmente aqueles articulados pela Confederação Nacional da Agricultura e Pecuária (CNA), que atualmente exercem uma violenta pressão contra os direitos constitucionais dos povos indígenas e quilombolas e que se articulam em torno da Frente Parlamentar da Agropecuária.
O governo sinaliza que irá retirar da Fundação Nacional do Índio (Funai) atribuições estabelecidas pelo Decreto 1775/1996 e pela Portaria 14/1996/MJ, relativas aos trabalhos de identificação e delimitação das terras indígenas no país. O que se pretende de fato é concretizar um ajuste político que imponha maiores e mais profundas dificuldades e limites à efetivação dos direitos dos povos indígenas expressos no Artigo 231 da Constituição Federal.
Fazendo eco a argumentos falaciosos dos ruralistas, o ministro da Justiça, estranhamente, vem questionando as atribuições da Funai de analisar e emitir parecer, no âmbito administrativo, acerca das manifestações contrárias aos estudos elaborados pelos Grupos de Trabalho (GTs) e apresentados em relatório circunstanciado de identificação e delimitação de terras indígenas. O ministro está esquecendo, no entanto, de salientar publicamente que todos os procedimentos e pareceres emitidos no âmbito da Funai são submetidos a longa e criteriosa análise, pela consultoria jurídica do Ministério da Justiça, antes dele próprio decidir acerca da declaração de tradicionalidade de uma determinada terra indígena.
Além do direito ao contraditório, estabelecido pelo Decreto 1775, no ano de 1996, para atender as reivindicações dos setores contrários aos direitos indígenas, os interessados envolvidos em processos de demarcação de terras têm esta previsão expressa também na Constituição Federal e vem fazendo uso do dispositivo em processos judiciais que questionam os procedimentos administrativos. Não cabe, portanto, a alegação de que o procedimento de demarcação é parcial e ou injusto para os que vivem sobre terras tradicionalmente indígenas, em ocupações de boa ou má fé. Ao contrário, a efetivação desses procedimentos esbarra na letargia governamental, que os submete a processos que se arrastam por décadas. Assim, os povos indígenas sobrevivem sem que possam ter acesso às terras necessárias a sobrevivência física e cultural que, conforme determina a Constituição, são de seu usufruto exclusivo e permanente.
Na avaliação do Cimi, as declarações do ministro da Justiça visam abrir caminhos, inclusive, para que a atribuição de julgar as manifestações contrárias às demarcações das terras indígenas seja assumida, de maneira direta, pela Advocacia Geral da União (AGU). Entendemos que isso se constitui em grave risco aos povos indígenas uma vez que a AGU já se posicionou, através da Portaria 303/2012, contrária aos preceitos constitucionais indígenas.

O Cimi alerta que as mudanças anunciadas, caso efetivadas, irão aprofundar os graves problemas e violências que são cometidas contra os povos indígenas no Brasil. Não podemos aceitar que os povos indígenas sejam, uma vez mais, vitimados pelo governo brasileiro em função dos interesses de segmentos ligados ao latifúndio e ao agronegócio. Não podemos aceitar, uma vez mais, que indígenas e quilombolas sejam considerados entraves diante da ambição de segmentos que pretendem explorar suas terras. Não podemos aceitar, uma vez mais, que os direitos constitucionais dos povos indígenas sejam tratados como moeda de troca à mercê de articulações políticas e interesses privados.
Por fim, esperamos que ainda exista o mínimo de bom senso às instâncias do governo brasileiro a fim de que não se concretizem as mudanças sinalizadas pelo ministro da Justiça.
Brasília, 30 de abril de 2013
Conselho Indigenista Missionário - CIMI

segunda-feira, 29 de abril de 2013

PF registra ameaças de morte e atentados em área indígena de MT


Três meses após a desintrusão da Terra Indígena Marãiwatsédé (TI) o clima de tensão ainda continua na região de Alto Boa Vista. Ameaças de morte e atentados foram registrados pela Polícia Federal depois que produtores rurais e fazendeiros foram retirados da área por determinação judicial. As denúncias de ameaça seriam motivadas inclusive por conflitos entre os índios xavantes, que durante o processo de desintrusão divergiram sobre o direito de posse da área.

Entre novembro e dezembro, época da desintrusão, o cacique da Aldeia Marãiwatsédé, Damião Paridzané, sofreu atentados, que continuaram em janeiro e fevereiro. O último ocorreu há 20 dias em Bom Jesus do Araguaia. Damião apontou ter sido abordado na rua por um ex-morador da TI, que disse precisar fazer um acerto com ele em outro lugar. O cacique negou discutir com o homem, que afirmava que iria entrar na área para retirar uma cerca e outros materiais que haviam ficado para trás depois da desocupação.

Comentários em tons ameaçadores surgem com frequência, conta por telefone o cacique de Brasília. Antes do início da desintrusão o filho de Damião também teve a vida em risco. Ele foi jogado para fora da estrada quando saía de Barra do Garças e seguia em direção à aldeia na condução de um veículo.

A tensão permanece na região por causa da terra, bens de não-índios e conflitos políticos entre os indígenas xavantes. O cacique e pajé da aldeia Santa Clara da Reserva Parabubure José Luiz Gonzaga Tserité afirma que também está sendo ameaçado. Ele é primo do cacique da Marãiwatsédé e vive em Campinápolis (658 km a leste da Capital) dentro de uma área de 180 hectares com outras aldeias. Após a desintrusão ele diz ter sofrido tentativa de sequestro e conta que, recentemente, pessoas foram lhe procurar no centro da cidade.


País aplica apenas 11% de fundo para proteger Amazônia


Criado há cinco anos para financiar projetos de preservação da floresta, o Fundo Amazônia já recebeu um "cheque" de R$ 1,29 bilhão, mas só desembolsou 11,4% desse total. Por causa da demora, o Brasil agora tenta renegociar com países doadores, Noruega e Alemanha, a ampliação do prazo para aplicação dos recursos, inicialmente previsto para dezembro de 2015.
"A imagem que fica é ruim", constata Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental e integrante do Comitê Orientador do Fundo Amazônia. "O incômodo e o desgaste do Brasil no cenário internacional somente será evitado se o País conseguir reverter a tendência de aumento no ritmo do desmatamento."
A reportagem é de Lígia Formenti e publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, 28-04-2013.
Os alertas de desmatamento na Amazônia Legal aumentaram 26% entre 1º de agosto de 2012 e fevereiro de 2013, em comparação ao período anterior.
O fundo é formado por doações da NoruegaAlemanha e da Petrobrás. A captação de recursos está condicionada à redução das emissões de gases efeito estufa resultantes do desmatamento. A verba é repassada para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES), encarregado de analisar, aprovar, contratar e acompanhar os projetos.
Para Elisabeth Forseth, conselheira da Embaixada da Noruega, houve demora no processo de formação da carteira de projetos. Ela avalia que iniciativas até agora apoiadas não refletem o tamanho dos recursos disponíveis, mas diz estar confiante numa maior rapidez da análise das propostas.
No Ministério do Meio Ambiente, o diretor do departamento de Políticas para o Combate ao Desmatamento, Francisco Oliveira Filho, também diz acreditar que o ritmo nas avaliações e liberações de recursos será mais intenso nos próximos dois anos. A maior velocidade, afirma, seria resultado de uma mudança na lógica da escolha dos projetos que serão beneficiados com financiamento.
A ideia agora é dar prioridade a projetos "estruturantes". Isso significa que a preferência será dada para propostas de maior impacto e abrangência. Um projeto voltado para várias comunidades ribeirinhas, por exemplo, terá preferência a outro endereçado a apenas um grupo de moradores. Oliveira Filho atribui o ritmo lento inicial ao período de adaptação. Algo que, para ele já foi superado.
Burocracia
Para o diretor do Museu da Amazônia, Ênio Candotti, a lentidão não surpreende. "É um reflexo da própria contradição do governo sobre o desenvolvimento da região. De um lado, existem estratégias de conservação. De outro o PAC, cuja filosofia é desenvolvimento nacional a qualquer custo, doa a quem doer."
Tanto Candotti quanto Adriana Ramos identificam boa vontade na equipe do BNDES para avaliação e liberação de recursos do fundo. "O problema é que não se pode organizar ações na Amazônia do Rio de Janeiro ou de São Paulo. O apego à burocracia, à assinatura, aqui não funciona", afirma Candotti. "A lógica tem de ser outra: o apego ao resultado e não ao processo."
Adriana diz que a delegação ao BNDES para a análise e liberação de recursos era vista com bons olhos. "Acreditava-se que o contato com o tema faria com que o banco refletisse mais sobre o viés ambiental dos investimentos, de forma geral. Algo que não ocorreu."
Apesar da necessidade da prorrogação, o BNDES, por meio da assessoria de imprensa, afirma não haver demora no uso dos recursos. Se comparado o desempenho com fundos análogos, diz o banco, o Fundo Amazônia está sempre em primeira ou segunda posição quando considerados os critérios de compromisso de doações em favor do fundo, número de projetos ou valores.
No Pará, projeto foi autorizado, mas ainda não saiu do papel
As dificuldades do Fundo Amazônia não se limitam à aprovação de projetos ou liberação de recursos. Iniciativas muitas vezes demoram para sair do papel mesmo após o sinal verde ser dado. O município de Jacundá (PA) é um exemplo. Desde agosto, a cidade tem autorização para executar um projeto de gestão ambiental no valor de R$ 820 mil, mas até agora nenhum centavo foi usado.
"O problema é local", diz o secretário de Meio Ambiente da cidade, Gilberto Machado. "Por razões do próprio município, a licitação ainda não foi feita."
Os recursos do fundo são encaminhados para projetos propostos por universidades, terceiro setor, municípios, governos estaduais e governo federal. No período 2013/2014, governos estaduais ficam encarregados de apresentar propostas de municípios. Uma medida criticada por Adriana Ramos, do Instituto Socioambiental. "O ideal é dar autonomia aos municípios. Embora traga agilidade, esse tipo de estratégia pode fazer com que disputas locais e questões políticas atrapalhem o processo." Para a conselheira da Embaixada da Noruega no Brasil, Elisabeth Forseth, há projetos interessantes no portfólio do fundo. "Mas ainda não há resultados suficientes para se avaliar a grande maioria dos projetos apoiados."

domingo, 28 de abril de 2013

Manifestantes são atacados pela PM na reabertura do Maracanã



Jornal A Nova Democracia — Na noite de ontem, cerca de 400 pessoas fizeram um protesto durante a partida de futebol que marcou a reabertura do estádio jornalista Mário Filho, o Maracanã, no Rio de Janeiro. Os manifestantes se mobilizaram contra a privatização do tradicional complexo esportivo e os demais impactos dos megaeventos na vida do povo pobre, como a militarização de favelas e a remoção arbitrária de bairros pobres. Participaram do ato, alunos e parentes de alunos da Escola Friedenreich, indígenas da Aldeia Maracanã, atletas e parentes de atletas que treinavam no Estádio de Atletismo Célio de Barros e no Parque Aquático Júlio Delamare, além de diversas pessoas atingidas pelas megaconstruções promovidas pelo gerenciamento Dilma/Cabral/Paes. 

Em um determinado momento da manifestação, sem nenhum motivo visível, PMs começaram a jogar bombas indiscriminadamente contra as pessoas que participavam do ato. Entre elas estavam mulheres e várias crianças que estudam no Colégio Municipal Friedenreich. A escola é parte do Complexo Maracanã e ficou entre as dez melhores escolas públicas do Estado do 1° ao 5° ano de ensino, segundo as notas do Ideb (Instituto de Desenvolvimento da Educação Básica) de 2011. 

Depois de dar uma demonstração da crescente violência do Estado contra os movimentos sociais, PMs prenderam vários manifestantes. Até mesmo um de nossos jornalistas permaneceu por vinte minutos detido acusado de "ser manifestante", apesar de estar identificado e com o seu equipamento na mão. Os presos foram levados para a 18ª DP e liberados depois de prestarem depoimento. Eles responderão pelos crimes de agressão e desacato a autoridade.

Abril Indígena reacende o poder e a necessidade da mobilização


Por Patrícia Bonilha,
de Brasília (DF)

A ocupação do plenário Ulisses Guimarães, da Câmara Federal, por cerca de 700 indígenas na última terça-feira, dia 16, entrou para a história. A imagem dos índios representantes de 121 povos, das cinco regiões do Brasil, entrando no coração da “Casa do Povo”, dançando e cantando, enquanto os deputados corriam visivelmente amedrontados é carregada de simbolismos. Divulgada amplamente pela mídia nacional e internacional, esta reveladora cena circulou extensivamente também pelas mídias sociais, onde muitos dos vídeos questionavam o porquê de os deputados estarem com tanto medo, já que se tratava de uma manifestação pacífica.

Somente com a ocupação do plenário os povos indígenas conseguiram encontrar ouvidos para a reivindicação de que os congressistas barrassem a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 215. Esta proposta inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, a titulação de terras quilombolas, a criação de unidades de conservação ambiental e a ratificação das demarcações de terras indígenas já homologadas. Para as lideranças indígenas, uma forma dos ruralistas, com cerca de 40% das cadeiras da Câmara Federal, terem controle sobre a demarcação de terras tradicionalmente ocupadas.  

Após estarem o dia todo reunidos no plenário 1, da Comissão de Constituição e Justiça, em que vários deputados estiveram presentes e o presidente da casa, Henrique Alves (PMDB-RN), compareceu para ouvir as reivindicações indígenas, eles foram frustrados com a proposta mais “avançada” apresentada pelos líderes dos partidos: a de que se comprometiam a não indicar representantes para a Comissão Especial sobre a PEC 215 em um prazo de 45 dias. A avaliação do movimento indígena era de que esta proposta, concretamente, não significava nada.

No entanto, a postura dos parlamentares mudou radicalmente após a ocupação do plenário no momento em que aconteciam as votações. Em reunião imediatamente realizada entre lideranças indígenas e deputados federais foi definida a criação de um grupo paritário para discutir a PEC 215 e outras propostas e ações legislativas e executivas que ameaçam os direitos indígenas. A primeira reunião deste grupo, instalado dois dias após a ocupação, será em 14 de maio.

Através da ocupação, com foco nesta famigerada PEC, os indígenas também conseguiram visibilizar para toda a sociedade brasileira que direitos fundamentais e historicamente conquistados por seus povos estão sob grave ameaça. Levar este debate para os brasileiros é uma conquista e tanto, ainda mais considerando a dificuldade de sensibilizar a mídia corporativa em relação aos direitos das comunidades e povos tradicionais.

“Foi o maior ato político organizado pelos indígenas até agora”, afirmou o deputado federal Padre Ton (PT-RO). Segundo ele, os indígenas ocuparam o Congresso de modo legítimo e pacífico, com cantos, danças e, sobretudo, falas com muito conteúdo. “O foco foi correto e, por isso, houve o apoio da mídia e da sociedade, de modo geral, a intimidação da bancada ruralista, que nem se manifestou, e a definição de um grupo de trabalho que vai negociar a PEC 215, o Projeto de Lei (PL) 1610, sobre mineração em terras indígenas, o atraso nas demarcações e os principais problemas das políticas públicas direcionadas para estes povos. O ato foi muito vitorioso”, avalia.

Unidos pelos direitos

O cacique Neguinho Truká, do sertão pernambucano, compartilha a avaliação positiva do deputado. “Mesmo com todas as dificuldades financeiras, este foi o melhor Abril Indígena. A mobilização traz a essência do nosso movimento. Todas as nossas conquistas, inclusive as garantidas na Constituição de 88, foram feitas com muita mobilização”, afirma ele. Segundo Truká, os índios ficaram paralisados, esperando as coisas acontecerem, por um período por acreditarem que os governos que ajudaram a eleger eram parceiros e defensores das suas causas. Mas a realidade tem se mostrado outra. “A presidente Dilma tem se escondido para não falar com os índios”, indigna-se, complementando que esta articulação realizada em Brasília precisa ser mantida nas regiões, fundamentada no objetivo de fortalecer os povos indígenas diante das ameaças aos seus direitos e dos desafios enfrentados no dia-a-dia.

Nesse mesmo sentido é feita a avaliação de Ninawá Huni kui, que considera que mesmo com todas as suas particularidades, os povos indígenas estão unidos. “Demonstramos que estamos preparados para defender nossos direitos, seja através do diálogo ou do embate, porque não podemos ficar de braços cruzados quando tudo o que nossos guerreiros e líderes conquistaram está ameaçado agora”, considera o representante da Terra Indígena Hene Nixia Namakia, localizada no município de Feijó, no Acre.

Ninawá ressalta a importância da articulação com as comunidades tradicionais já que muitas das proposições legislativas e executivas que retiram direitos  não se restringem aos povos indígenas. “Trata-se, acima de tudo, de uma disputa por territórios. E é preciso ter clareza sobre isso”, assegura.

Em consonância, o assessor da Articulação dos Povos Indígenas, Paulino Montejo, afirma que o que também está em disputa é o projeto de nação. Segundo ele, de um lado, há um projeto hegemônico, autoritário, patriarcal, machista e monoétnico, que nega as diversidades. De outro, um modelo de nação plural, que respeita a vida, a dignidade e que entende que a diversidade é riqueza, e não um obstáculo; este projeto prevê condições dignas para o conjunto da sociedade e não para uma minoria. Montejo também considera que cada terra indígena demarcada não é uma dádiva ou uma concessão que o Estado dá. "É o reconhecimento de um direito originário. Os povos indígenas têm clareza sobre o fato de que as terras e os recursos naturais que preservaram por milhares de anos estão sob ameaça, mas não vão abrir mão fácil disso", garante.

O secretário executivo do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Cléber Buzatto, faz coro à importância de manter a mobilização e a articulação no sentido de evitar um golpe contra os direitos dos povos indígenas, tanto no Legislativo como no Executivo. Ele utiliza a recente "descoberta" do Relatório Fiqueiredo, realizado em 1967 e que retrata violências e atrocidades cometidas contra os índios tanto por órgãos do estado como por fazendeiros e outros atores, para fazer uma instigante comparação. "Este relatório é revelador no sentido de que, quase cinquenta anos depois dele ter sido realizado, os povos indígenas continuam tendo que lutar e resistir contra os mesmos atores e sujeitos que atacam violentamente os seus direitos. Com a gravidade de que agora estes povos têm esses direitos assegurados pela Constituição de 88; e, mesmo assim, são ignorados", afirma Buzatto. Ele acredita que a ampla publicação deste relatório é necessária como um instrumento na movimentação de resistência e de luta para a efetivação dos direitos dos povos que o Abril Indígena explicitou para toda a sociedade brasileira na semana entre 15 e 19 deste mês.

Agenda de resistência

Ações e eventos em diferentes instâncias dos três poderes compuseram a extensa agenda da semana do Abril Indígena. Todas com o mesmo objetivo de reverter os processos em trâmite que visam ao retrocesso na garantia dos direitos dos povos indígenas.

A reunião com o presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Joaquim Barbosa, foi bastante significativa pela sensibilidade que ele demonstrou em relação às reivindicações indígenas em relação à Portaria 303. Emitida pela Advocacia-Geral da União (AGU), ela é considerada outra grande ameaça por estender as condicionantes decididas pelo STF na Ação Judicial contra a Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, para as demais terras indígenas. Segundo Barbosa, as condicionantes não deveriam constar na decisão da demarcação da Raposa Serra do Sol porque não foram objeto da ação e não proporcionaram a manifestação das partes envolvidas.

A audiência pública realizada pela Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa no Senado Federal foi outro evento que, ao dar voz a lideranças indígenas como Otoniel Guarani-Kaiowá, explicitou a necessidade de demarcar urgentemente territórios indígenas que foram ocupados por fazendeiros, dentre outras demandas. “Não viemos para Brasília celebrar o dia do índio. Viemos reclamar nossos direitos e denunciar nossos mortos. Denunciar os ataques e as injustiças a que estamos submetidos. Exigir que devolvam nosso território e nossa dignidade”, afirmou Otoniel.

Na tarde do dia 18, a ação central dos indígenas foi no Palácio do Planalto. A reivindicação era a de uma reunião com a presidenta Dilma Roussef, que desde que assumiu o mandato, em 2011, nunca se reuniu com o movimento indígena. No entanto, o máximo que o governo federal ofereceu foi uma conversa com o ministro Gilberto Carvalho e um encontro com os demais ministros. Os índios recusaram e em uma nota manifestaram seu repúdio à presidenta: “Não, não queremos mais falar com quem não resolve nada! Há dois anos entregamos, nós povos indígenas, durante o Acampamento Terra Livre 2011, uma pauta de reivindicações para esses ministros e nada foi encaminhado. De lá para cá perdemos as contas de quantas vezes em que Dilmaesteve com latifundiários, empreiteiras, mineradores, a turma das hidrelétricas. Fez portarias e decretos para beneficiá-los e quase não demarcou e homologou terras tradicionais nossas. Deixou sua base no Congresso Nacional entregar comissões importantes para os ruralistas e seus aliados”.

Na tarde da sexta-feira, dia 19, os indígenas participaram da audiência pública realizada pela 6ª Câmara do Ministério Público Federal (MPF). Neste mesmo dia, esta instituição ajuizou 14 ações civis públicas e expediu 19 recomendações para instituições públicas e empresas privadas visando garantir alguns processos de reconquista de terras dos povos indígenas. A vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat, afirmou naquela ocasião que há uma série de iniciativas, não só no Congresso, de ataques aos direitos dos indígenas, sobretudo os relacionados às demarcações de terras. “O Ministério Público Federal está preocupado com a lentidão nos processos e está elaborando um conjunto de propostas para tirar da imobilidade os processos de demarcação de terras indígenas”, afirmou.

A verdade sobre a tortura dos índios


Descoberta de documento que permaneceu oculto por mais de quatro décadas expõe como funcionou a política de corrupção, violência e extermínio do Serviço de Proteção aos Índios antes e durante a ditadura

Laura Daudén e Natália Mestre
O Serviço de Proteção aos Índios (SPI), representado por Flávio de Abreu, chefe da 6ª inspetoria, localizada em Mato Grosso, vendeu a pequena índia Rosa, 11 anos, em plena hora da escola. Ela e as colegas bororos foram obrigadas a parar os estudos e formar fila. Abreu estava acompanhado por um sujeito chamado Seabra, que escolheu a índia que queria para si. A vida de Rosa foi entregue a Seabra pelo funcionário público como pagamento pela construção de um fogão de barro em sua fazenda. Ao pedir clemência a Abreu, o pai da menina foi covardemente surrado. A denúncia, que expõe a institucionalização da violência contra os índios no Brasil, faz parte do Relatório Figueiredo, um documento de mais de sete mil páginas produzido pelo procurador federal Jáder Figueiredo entre 1967 e 1968 a pedido do extinto Ministério do Interior. O trabalho mostra a corrupção endêmica, os métodos de tortura e escravização e a exploração do patrimônio indígena por funcionários do extinto SPI – órgão antecessor à Fundação Nacional do Índio (Funai).
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VIOLÊNCIA
Relatório expôs a situação de penúria e exploração
em que viviam os índios sob os cuidados do SPI

Depois de quatro décadas longe do escrutínio público, o relatório foi finalmente redescoberto pelo pesquisador Marcelo Zelic, vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais, de São Paulo. Ele procurava há tempos o documento, mas o encontrou, por acaso, no arquivo do Museu do Índio, no Rio de Janeiro (leia quadro abaixo). Com o AI-5, o material ficou esquecido nos arquivos da Funai. Inclusive, muitos pesquisadores acreditavam que ele teria sido perdido em um incêndio no Ministério da Agricultura – na verdade, a tragédia aconteceu às vésperas da Comissão de Inquérito de Figueiredo. Agora, uma cópia está com o grupo de trabalho “Graves Violações de Direitos Humanos no Campo e/ou Contra Indígenas” da Comissão Nacional da Verdade.
Jáder Figueiredo foi uma figura ímpar, que desagradou a esquerda e a direita. Apesar de ter sido destacado para o trabalho pelo general linha-dura Albuquerque de Lima, que à época ocupava a pasta do Interior, a gravidade de suas acusações – que vão de desvio de recursos e venda de terras indígenas a assassinato, prostituição de índias e trabalho escravo –, colocaram-no contra o próprio regime militar. Foram muitos os esforços para mitigar a repercussão do escândalo no Exterior. As denúncias chegaram a ser destaque no jornal americano “The New York Times” e na revista alemã “Der Spiegel”. Um documento confidencial da Aeronáutica, de 26 de outubro de 1970, localizado pelo grupo Tortura Nunca Mais, afirma que “o fluxo de informações contra o Brasil no Exterior é constante e se faz em larga escala”. Logo abaixo, diz que “o trabalho relativo à ‘matança de índios’ foi completamente neutralizado e desmoralizado face às atividades das autoridades brasileiras”. Não é de se estranhar, portanto, que o Relatório Figueiredo tenha ficado mais de quatro décadas esquecido no arquivo da Funai, cuja criação em 1967 coincide com a extinção do SPI. “Evidentemente, o fato de ele ter permanecido oculto nas bases de dados da história brasileira foi intencional”, diz o professor Fernando Antonio de Carvalho Dantas, da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Goiás.
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HISTÓRIA
Jáder Figueiredo Júnior (com a foto do pai) e trechos do
documento (acima): denúncias de violência contra os índios

Mesmo tendo sido responsável por uma crise dentro do regime, Figueiredo também é visto com reticências pela esquerda, justamente por ter servido, na condição de funcionário público, aos interesses do Ministério do Interior. A psicanalista Maria Rita Kehl, membro da Comissão Nacional da Verdade e coordenadora do grupo de trabalho que estuda violações contra indígenas, é cautelosa ao comentar o documento: “Teremos de procurar na história daquele momento outros subsídios para poder avaliar se o relatório não prejudica funcionários acusados injustamente só porque eram contra a ditadura”, diz. Para o pesquisador Marcelo Zelic, é preciso lembrar, no entanto, que as primeiras denúncias que dão origem à Comissão de Figueiredo são levantadas em duas CPIs anteriores, instauradas ainda durante o governo de João Goulart. Além disso, a maior parte dos crimes apontados por ele ocorreram depois do golpe de 1964. “Até pode haver casos de perseguição em meio aos 131 acusados que aparecem no relatório, mas você não pode generalizar e desmerecer um trabalho dessa magnitude”, diz.
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NO EXTERIOR
O Relatório Figueiredo repercutiu no "The New York Times",
o que desagradou o governo na época

Isso explica a marginalização política de Figueiredo e de seu relatório, que deu origem a uma CPI e gerou dezenas de inquéritos policiais dos quais ainda não se tem notícia. Hoje, grande parte do trabalho de resgate da figura do procurador está nas mãos de seu filho, o advogado Jáder Figueiredo Correia Júnior. “Meu pai passava semanas sem se comunicar”, conta. Foram visitados 130 postos indígenas em 18 Estados – uma viagem de 13 mil quilômetros pelo Brasil. A família, que sempre viveu em Fortaleza, no Ceará, conviveu por muito tempo com ameaças. “Mesmo assim ele seguiu com o trabalho. Era destemido e incorruptível e por isso contrariou o interesse de grandes políticos da época”, diz. Figueiredo morreu em 1976, aos 53 anos, em um acidente de ônibus. Vivia, segundo o filho, frustrado por pouco ter sido feito contra os acusados e pela continuação dos crimes.
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MISSÃO
Figueiredo rodou mais de 13 mil quilômetros no Brasil
e testemunhou violações contra povos indígenas

A redenção do procurador deve acontecer agora, com a redescoberta do documento que tem implicações até no presente. Segundo Cléber Cesar Busatto, secretário-executivo do Conselho Missionário Indigenista, o Ministério Público já anexou o documento aos autos do processo que pede a demarcação do território dos cadiueus, em Mato Grosso do Sul. Figueiredo, no documento, afirmou: “Estima-se em 800 mil hectares a área dessa imensa propriedade, não demarcada e hoje totalmente em poder de fazendeiros que se beneficiam de arrendamentos ilegais”. “Sem dúvida o relatório será usado como instrumento em outras disputas”, diz Busatto.
Ou seja, apesar dos esforços para apagar a verdade das violações, o relatório é um instrumento importante para esclarecer o passado. “A história dos direitos dos povos indígenas será recontada a partir do relatório”, diz o professor Dantas, ressaltando que os crimes nunca foram apagados da memória dos povos e das pessoas que lutam pelos índios no País. Segundo o antropólogo Carlos Augusto da Rocha Freire, coordenador de Divulgação Científica do Museu do Índio, no Rio de Janeiro, são justamente essas memórias que ajudarão a reconstruir o que falta dessa história – 533 páginas, que representam 7% do documento, ainda estão desaparecidas. Freire diz que a repercussão internacional do Relatório Figueiredo fez com que a questão indígena fosse amplamente discutida, mas não impediu que a Funai repetisse a estrutura do SPI e adotasse uma política que dizimaria povos como os Paraná, afetados pelo projeto econômico desenvolvimentista da ditadura. “Se os velhos sertanistas e indigenistas, além das velhas lideranças indígenas, começassem a escrever suas memórias, fizessem entrevistas relatando o que viram e ouviram, e os índios incrementassem suas narrativas sobre o que sofreram nesses anos, os brasileiros, certamente, poderiam vir, agora sim, a descobrir um outro Brasil.”